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Mini-conto: A fera

O texto a seguir é uma história fictícia sem qualquer compromisso com a realidade, estimulando simplesmente reflexões nem tão profundas acerca de temas como a existência humana e contradição através de uma visão um tanto pessimista.

Não sabia ao certo quando o chão e o céu haviam se tornado um só em um branco angustiante. Porém depois de horas, talvez dias, de caminhada e cegueira ver um ponto de escuridão foi um alívio. Sem saber e qual direção havia andado, ou quanto tempo, traçou o rumo para aquele brilhante ponto escuro.

Uma perfeita escuridão cada vez maior, cada vez próxima, uma barreira que impedia o branco de adentrar, um abrigo para sua tormenta pessoal. Teve dificuldades em saber quando de fato estava em frente à seu oásis, pois seu senso de profundidade e direção haviam sido danificados o suficiente. Mas de repente tudo mudou, as sombras envolveram-no, súbitas como um predador e carinhosas como uma mãe. Agora sabia que estava em segurança.

Quando lá chegou, pode respirar pelo alívio que fora dado a sua mente. Teorizou que a caverna tinha uma boa altura, provavelmente mais de dois metros e era um túnel aparentemente comprido. Adentrou na escuridão desconhecida, fugindo da claridade opressora. Quando já estava devidamente protegido de seu algoz, sentou-se se recostando, em uma parede.

Demorou muito para que seus olhos se adaptassem, mais tempo que o normal devido à condição anterior. Porém, um calafrio, um pressentimento, lhe dizia que não estava totalmente seguro. Os ouvidos, após a euforia causada pela sensação de segurança, logo voltaram a funcionar e lhes dissera que havia mais alguém ali. Uma respiração pesada, porém calma, se fazia ouvir.

Após segundos, segundos demais que pareceram horas de temor, seus olhos já voltavam aos poucos a funcionar. Pôde distinguir primeiro algumas silhuetas, partes das paredes, pedras e o chão. E algo gigantesco, não totalmente imóvel e não parecia ser de todo rígido. O tempo lhe permitia notar determinadas coisas vez por vez, como se lhe desse peças de um quebra-cabeças. Notou que havia um constante movimento repetitivo na enorme sombra. E depois vira um contorno mais detalhado, revelando várias pontas irregulares.

Em seguida percebera o vapor que aparecia e sumia repentinamente, com um tempo já determinado de repetição. Agora seus olhos estavam completamente abertos, e podia distinguir claramente o que estava à sua frente. Um monstruoso urso-pardo jazia deitado, realizando a clássica hibernação. Um ser adormecido não se torna menos assustador.

Somente depois de passado muito tempo de percebeu paralisado, analisando cada detalhe do animal. O medo lhe cercava e ele agora tinha duvidas em qual seria o perigo maior. Horas passaram, o frio se fortaleceu e sua paralisia foi substituída por tremores. O vapor em sua respiração era maior agora e esta já era irregular. Seus dedos já perdiam parte do movimento e suas pernas já doíam após tanto tempo imóveis, naquela temperatura.

Tomara a decisão mais insana de sua vida, motivada pela loucura que lhe fora imposta ou talvez por uma fina linha de esperança que o fazia lutar pela sobrevivência. Com toda a cautela possível durante o conflito interno entre a vontade de fugir do doloroso frio e o medo de despertar o monstro, caminhou adiante.

Cada passo o permitia ouvir um leve rugido produzido pela respiração da besta. Agora não sabia se tremia pelo frio ou pelo temor. Sentou- se calmamente ao seu lado e com os braços tentou abraça-lo, mas vira que seria impossível. Se contentou então a ter somente o corpo encolhido e encostado à sua chance de sobreviver. Os pelos lhe pareceram bem macios e o calor que agora recebia lhe trouxera paz por pelo menos tempo suficiente para adormecer.

Acordou assustado com um som mais alto que o normal. Com medo de seu fim ter finalmente chegado, se contentou em pensar que seria rápido. Porém, nada mudou. Ainda estava ali, com seu companheiro adormecido. E assim ficou durante incontáveis horas, ou segundos, não poderia dizer. Tudo agora era escuridão ele estava inerte, a respiração do urso era agora seu canto de pássaros, a pelagem sua campina e seu calor o sol.

Estava imerso na paz de um lago plácido. Até o momento que com a força de uma tempestade sua fome gritou. Ele a esquecera depois de tanto tempo, se tornara parte dele. Porém agora estava mai forte, mais raivosa, disposta a mata-lo.

A dor o fazia se contorcer e por isso se jogou ao chão para não incomodar seu companheiro de quarto. Após a agonia, houve um período de trégua e pode voltar a se aconchegar junto à seu campo de descanso. Com o tempo se acostumou a dormir, entretanto era sempre acordado pela sua adversária para um novo assalto.

Ele não conseguia medir o tempo, mas sentia que ela retornava cada vez mais depressa. Seu sono era constantemente diminuído e depois fora completamente anulado, a batalha se tornou longa, exaustiva, sempre mais difícil. Depois de dias sem nenhum sono e muita dor, tudo parecia ter parado no tempo.

Já não ouvia a respiração de sua companhia, já não sentia mais frio e a fome se tornara tão parte dele que não se lembrava como era a vida sem ela. Seus sentidos se esvaíram, nada ouvia, nada sentia, nada pensava, só podia ver. Observava seu amigo dormindo calmamente, aquele que estaria com ele nos momentos finais.

Sabia que o fim se aproximava como nunca e imaginou o que aconteceria depois. Quando o inverno chegasse ao fim, seu amigo o veria morto assim que acordasse, talvez fosse seu desjejum. Ele não se importava. Se ele fosse devorado naquele momento após um súbito despertar estaria em paz. Aquele monstro, a besta, o animal, o urso, lhe ajudara quando mais precisou, lhe manteve vivo, lhe deu aquilo que podia, foi seu amigo. Fizera mais por ele do que todos os outros que conhecera ao longo da vida que tivera antes de decidir caminhar pela neve.


 
 
 

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